Histórias que se cruzam - Por Simon Oliveira

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Por Simon O. dos Santos, Professor, escritor, membro da Academia Guajaramirense de Letras
 
 
Nasci em um seringal localizado na região do município de Xapuri, no Estado do Acre.  Eu e minhas seis irmãs fomos abusadas pelo nosso padrasto desde crianças, até que eu fugi para a cidade e fui abrigada em um prostíbulo. De minhas irmãs, não tive mais notícias, acho que se tornaram putas também. 
 
 
Dona Jurema, um amor de pessoa, muito sensibilizada com minha história, me confidenciou que também fora abusada pelo padrasto e por um irmão dele. Após fugir das garras dos predadores, e abandonar a família na zona rural de Xapuri, resolveu se aventurar nas águas do Rio Madeira, onde o ouro resplandecia nos  sorrisos largos dos milhares de garimpeiros.
 
 
Narrar o drama de Dona Jurema é o mesmo que descrever meu próprio drama, de minhas irmãs e de centenas de meninas nos seringais do Acre, nas currutelas dos garimpos e nos confins da Amazônia. 
 
 
De família numerosa como a minha, Dona Jurema era a mais velha dos seus oito irmãos, quase todos filhos de pais diferentes. Durante os dezesseis anos que conviveu com a família, foram inúmeros os padrastos que sua mãe arranjou. Se recorda muito bem do último, e jurou que um dia o mataria, juntamente com seu irmão. 
 
 
Sua saga pelos garimpos do Rio Madeira começou   na Cachoeira Madeira, em Vila Murtinho, e durante quinze anos perambulou por todas as fofocas e currutelas de Nova Mamoré a Porto Velho. Foi nesse garimpo que Dona Jurema abriu seu primeiro prostíbulo flutuante.
 Ficava abaixo da cachoeira, um pouco afastado da fofoca, onde centenas de balsas e dragas disputavam o cascalho dourado que escorria das águas barrentas do Rio Beni, na Bolívia.  
 
 
O prostíbulo ostentava uma luz vermelha arredondada, localizada no alto da cobertura de zinco do flutuante, focando em direção à fofoca, avisando aos aguerridos garimpeiros que naquele lugar podiam fornicar à vontade em troca de pepitas, ou do dinheiro fácil. 
 
 
Dona Jurema era a pessoa mais respeitada da fofoca. Mesmos os ricos garimpeiros lhe faziam referência. A estes, eram reservadas as moçoilas que chegavam cheirando a leite dos seringais do Acre. No seu ambiente não havia bagunça ou confusão. O primeiro que se atravesse era atirado vivo com mãos e pés amarrados nas águas do Madeira, para banquete dos candirus e das piracatingas.
 
 
Nas margens do Madeira, dezenas de bares, pequenos comércios e prostíbulos surgiam todos os dias. A febre do ouro deixava os garimpeiros e todos tipos de comerciantes em completos êxtases. As brigas e disputas sanguinolentas ocorriam a céu aberto. Não dando conta de enterrar tanta gente no cemitério municipal de Nova Mamoré, os agentes funerários enterravam os corpos nos barrancos às margens do rio.
 
 
Dona Jurema estava sentada em sua confortável poltrona de pluma de algodoeiro, quando viu várias bandeirinhas passando lentamente em direção à margem do rio, com dezenove corpos de garimpeiros, vítimas de afogamento enquanto mergulhavam em busca do cascalho no leito do rio. Todos foram enterrados às margens do Rio Madeira. 
 
 
A proprietária do Luz Vermelha continuava sentada, olhando o burburinho às margens do rio e o pôr do sol abraçando vagarosamente as matas virgens no lado boliviano. Percebeu que uma voadeira se aproximava lentamente de seu estabelecimento comercial, e pensou que mais um garimpeiro estava disposto a gastar com suas meninas, todo o ouro apurado em dia desgastante de mergulho.
 
 
A voadeira parou em ancorou na parte baixa do flutuante, enquanto o homem que estava sentado no banco do meio, levantou-se, colocou sua boroca a tiracolo, saiu  da embarcação  e subiu degrau por degrau até chegar à parte mais alta do flutuante, onde ficava o bar, e de onde se vislumbrava uma pequena cidade flutuante, barulhenta  e iluminada, formada por centenas e centenas de balsas e dragas com suas coberturas de lonas amareladas ou “Eternit” cinzas esbranquiçadas. 
 
 
O homem pediu uma dose de conhaque “Presidente, Cinco Estrelas”, para limpar a poeira da goela, pois tinha acabado de chegar dos seringais do Acre, em busca da riqueza dourada do Madeira. Aquela foi a última dose de conhaque que o infeliz acreano ingeriu, antes de virar comida de candiru.
 
 
Durante todo o percurso do infeliz, desde a voadeira até a parte alta do flutuante, Dona Jurema imóvel, com as mãos trêmulas, a boca seca e os olhos lagrimejantes, o acompanhou perplexa. Mesmo que o encontrasse no fim do mundo o reconheceria. Sua figura atarracada, seus cabelos de porco espinho e seu cheiro de gambá, permaneciam indeléveis em sua memória de adolescente estuprada em cima da tábua de lavar roupa no igarapé do seringal em Xapuri. 
 
 
O asco, o nojo e a vontade de matá-lo permaneciam os mesmos. Sentiu-se empoderada, pela primeira vez, diante daquela figura asquerosa que lhe provocara tantas dores físicas e emocionais. 
 
 
O homem permanecia em pé encostado na beirada do alambrado, olhando a cidade flutuante, e não percebeu quando Dona Jurema serviu junto com sua dose de conhaque, uma dose cavalar de veneno de rato, que ele sorveu de um único gole. 
 
 
O efeito foi quase instantâneo. Desorientado e salivando muito, o infeliz homem com dificuldades para respirar, caiu trêmulo no solo do flutuante e  com os olhos esbugalhados,  ainda compreendeu a fala vingativa de Dona Jurema:  - “ o seu irmão, eu  vou matar de faca”,  e o empurrou com o pé nas águas turvas e achocolatadas do Rio Madeira, o corpo indo enroscar-se nas centenas de tubos, cabos, abacaxis e poitas da cidade flutuante.  
 
 
Autor: Simon O. dos Santos
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