Disponível na Netflix há algum tempos, na época foi um dos filmes mais comentados e hoje está es-quecido, mas é sempre rever e lembrar, "Eu sou todas as meninas", do diretor Donovan Marsh - o mesmo do filme de ação "Fúria em alto mar" (2018) -, ele entrega o seu melhor e mais contundente trabalho, usando uma temática forte e cruel.
O filme, baseado em fatos reais, mostra um dos dramas absurdos ocorrido na África do Sul, quando meninas entre 7 e 10 anos eram sequestradas ou retiradas dos guetos e transformadas em escravas sexuais, vítimas do tráfico internacional e, por incrível pareça, sob o comando de ministros e autorida-des do governo, geralmente pedófilos.
Uma investigadora obstinada, Josie Snyman (a excepcional atriz Erica Wessels), que trabalha no de-partamento de crimes especiais, está tentando desbaratar uma quadrilha responsável pelo tráfico de meninas, ela mantém um vínculo involuntário com uma amiga de trabalho, uma policial forense, Thamsanqa (também excelente atriz Masasa Mbangeni), que tem uma identidade secreta como uma justiceira que quer derrubar um sindicato global de tráfico sexual infantil.
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O filme inicia com um prólogo mostrando Thamsanqa vendo um vídeo de interrogatório de um se-questrador de crianças condenado pela Justiça que relata como agia e no que consistia o seu trabalho de raptar meninas principalmente, tendo como cúmplice a sua esposa. Ela então fixa num flash back que mostra quando ela, criança, foi raptada junto com outras garotas e levada até uma mansão onde um homem rico - ministro do governo - acabou negociando com um Sheik, porém ela não foi vendida e por conta disso foi estuprada e depois levada para um prostibulo onde passou boa parte de sua in-fância e adolescência quando foi obrigada a se prostituir.
O filme faz mais outras remotas lembranças nesses flash back de Thamsanqa, mostrando como foi moldado o seu comportamento e o caráter íntegro a ferro e fogo, onde ela tenta superar um trauma praticando Justiça à sua maneira.
Desde o início sabemos como funciona o esquema de sequestro e tráfico dessas meninas, quem são as pessoas envolvidas, porém a obstinação da investigadora Josie acaba batendo de frente com seu chefe, que está sendo pressionado pelo alto comando da polícia a apresentar resultados.
Josie acaba quebrando cabeça com algumas situações que complicam sua investigação, principalmen-te quando é afastada após uma batida fracassada, ela então é designada a apurar um crime misterioso, um idoso corpulento é encontrado morto num parque com uma inscrição feita a faca no peito com três letras.
Logo depois surge outro corpo com a mesma marca no peito, porém são outras letras. A policial acaba cruzando sua investigação ao descobrir que as inscrições são iniciais de nomes de integrantes de um grupo de seis meninas que foram sequestradas e nunca foram encontradas, um famoso caso que en-volve pedofilia.
Não posso contar mais nada para não estragar esse filme muito bem feito, que foca em contar uma situação, porém deixa ou evita de tocar em outros assuntos que poderiam render ainda mais, como o racismo e o envolvimento de crianças pobres - que reflete na história de vida de Thamsanqa, que des-cobre na adolescência, quando é obrigada a se prostituir, que a sua liberdade está em aprofundar seus estudos, contrariando o seu destino de amargurar dias de seu futuro nessa sombra de dor e desespero.
Porém o diretor Donovan é habilidoso em construir um drama de investigação com suspense e ação, provocando nosso senso com situações inesperadas e reviravoltas com as personagens femininas, pro-pondo uma relação íntima que nunca é mostrada, nem precisa, mas serve o suficiente para termos em-patia pelas duas atrizes centrais. É um roteiro inventivo e que mantém a nossa atenção o tempo todo.
A sequência onde se descobre o aeroporto clandestino a noite com uma resolução inesperada acaba trazendo revolta e uma resignação, nos tornando o reflexo da Justiça que deve ser feita sem piedade.
O final traz essa justiça, mas não termina aquilo que parece absurdo nos dias de hoje, a revelação de dados reais sobre o crime mostrado no filme e só deixa evidente o quanto a natureza humana pode sucumbir à degradação e acaba sendo praticada por quem deveria ser justa, nunca cúmplice.
Quando o filme abre os créditos iniciais vem a frase:
"BASEADO EM FATOS REAIS"
Mas que fatos reais especificos seriam esses que inspiraram o filme? Além, é claro, de expor o crime de exploração e tráfico de crianças?
O caso mais notório ocorrido na África do Sul, no período do Apartheid. As ações criminosas do pe-dófilo e serial killer Gert van Rooyen, que aterrorizou a África do Sul no final dos anos 80.
Cornelius Gerhardus van Rooyen iniciou sua vida de crimes nos anos 50, anos depois ao lado de sua mulher, Joey Haarhoff, foi responsável pelo sequestro, estupro e assassinato de pelo menos 6 garotas – com idades entre 9 e 16 anos – no leste da África do Sul.
Na década de 90, logo que a sua última vítima conseguiu milagrosamente fugir Van Rooyen matou a sua parceria, Haarhoff, e depois se matou.
Na época a polícia encontrou evidências do envolvimento da dupla com os sequestros, porém os cor-pos das vítimas nunca foram encontrados.
Anos depois Flippie Van Rooyen, filho do serial killer, afirmou que três ministros do governo sul-africano também faziam parte de um esquema milionário de tráfico de crianças, no qual o seu pai con-tribuiu muito entregando meninas a esse grupo.
Forte e triste.
"Eu sou todas as meninas" é um filme bem realizado e com um tema muito atual.