Quem gosta de mangá (história em quadrinho japonesa, lida de trás pra frente) de terror já conhece o trabalho irrepreensível do escritor e desenhista Junji Ito, notável mangaká pelo seu estilo em contar histórias inusitadas envolvendo personagens bizarros, situações surreais que envolvem o terror corporal, psicológico, permeado muitas vezes pelo sobrenatural. Em muitos dos seus mangás Ito tem como influência os contos de horror de H. P. Lovecraft.
Lovecraft criou um estilo, chamado de “terror lovecraftiano”, também citado como "horror cósmico", um subgênero de ficção de terror e ficção surrealista que enfatiza o terror do desconhecido e incompreensível, envolvendo o corpo e mente, através da sensação de fantasia mórbida com outros elementos chocantes, que envolvem os temas recorrentes de inspirações do mestre Ito.
Antes de ser tornar um mestre do mangá de terror, Junji Ito, que teve no seu início de carreira forte influência no seu trabalho das suas irmãs desenhistas, foi levado pela admiração dos mangás de Kazuo Umezu (considerado o mangaká, pai do terror japonês) e Shinichi Koga (outro notável pioneiro mangaká do horror). Ele era técnico ondotológico até de fato entrar no mundo dos quadrinhos e se tornar um mangaká, quando percebeu que tinha talento e muitas histórias perturbadoras para contar.
Atualmente com 62 anos, Junji Ito já tem boa parte de suas obras lançadas no Brasil, principalmente pela editora Pipoca & Nanquim, assim como a Devir. Ele já esteve por aqui, no país, participando como convidado pela CCXP, onde descobriu para a sua surpresa que tem uma horda de fãs alucinados pelo seu trabalho.
Eu sou um dos fãs mais declarados dos mangás de terror de Junji Ito, vou dar quatro dicas de mangás que ele produziu e estão disponíveis no mercado brasileiro. São obras incríveis, com a sua arte marcante pelo seu estilo detalhista e histórias absurdamente loucas e brilhantes. Um dos maiores artistas do século.
Seguem as dicas:
"VÊNUS INVISÍVEL- COLEÇÃO DE HISTÓRIAS CURTAS"- Lançamento de luxo da editora Devir, de 276 paginas e pelo menos 30 páginas à cores - é um dos melhores (no plural).
Junji utiliza histórias de outro autores para criar arte em mangás muito acima da média - com direito a splash pages (páginas dupla com um unico quadro) de puro horror. A criação dele não é única, mas engrandece os enredos com a sua visão pluralista que vai do gótico à ficção científica, da violência - e a estética oriental pungente dos detalhes - ao surrealismo.
Até uma adaptação da previsível e perturbadora “Poltrona Humana”, de Ranpo Edogawa, ganha status de pura arte. A absurda tensão criada pelas páginas de Ito com a personagem central em choque ao descobrir o segredo de uma poltrona de luxo à venda num relicário de móveis é sublime.
Tem a história autobiográfica “Mestre Umezz e Eu”, em que Ito conta a influência que Kazuo Umezz teve na sua vida. Ainda menino descobrindo as revistas de horror que conseguia adquirir com muito custo. Mas a cada edição conquistada era importante como influência artística para a vida. Os dois quase trabalharam em um projeto juntos.
A história que dá título a coletânea, "Vênus Invisível", é de ficção cientifica sobre uma linda moça, que adora ufologia, e configura um segredo que é tratado aos olhos do leitor através de um efeito que a faz literalmente desaparecer diante de seus pretendentes.
Talvez minha história favorita dessa obra seja "Uma Paixão que não é deste Mundo", também baseado num conto de Ranpo Edogawa. Desde as obras primas "Uzumaki" e "Gyo" não via os traços de mestre Ito tão realistas e com o extremo trabalho de design de cenários à beira da perfeição.
A coletânea ainda tem as histórias "Como o Amor veio ao Professor Kirida", "A Trágica História do Pilar Principal" e "O Filho Póstumo" - um terror gótico seco e cruel, envolvendo um bebê que nasce de uma defunta e traz segredos que vão destroçar uma tradicional família conservadora.
O PERVERSO HUMOR NEGRO DE SOUICHI -A editora Pipoca & Nanquim publicou essa obra - uma das mais magistrais - do mestre dos mangás de terror, Junji Ito, "As egocêntricas maldições de Souichi", com 418 páginas o mangá traz ao Brasil um dos personagens mais odiáveis e engraçados do universo de criações de Ito.
Souichi é um garoto de uns 12 anos que vive se isolando em sua casa, no quarto e no sótão. Irmão caçula dos adolescentes Kouichi e Sayuri, ele é antissocial, porém para chamar a atenção de todos, principalmente dos primos de segundo grau, Yuzuke e Michina, que passam férias, coloca suas maldições em prática.
Por ser um menino, Souichi mescla inocência com perversidade, vive com a boca cheia de pregos e gosta de pregar bonecos semelhante às pessoas que ele quer atingir em árvores de uma floresta próxima ou em algum canto da casa.
Escrito isso, com essa premissa, Junji Ito explora situações bizarras que envolve não só a família de Souichi, mas também vizinhos, a escola, colegas e até figuras improváveis que surgem no decorrer de algumas histórias.
Notável perceber o humor negro do autor em criar situações improváveis e dimensiona a maldade do guri.
Os traços de Ito estão mais limpos em relação a outras obras, sem pesar muito a mão em sombras - com exceção das duas últimas histórias, "O caixão" e "Rumores" -.
Publicado em 10 edições aleatórias entre 1991 e 1995, as histórias de Souichi fizeram tanto sucesso no Japão que Ito acabou utilizando sua figura em algumas coletâneas.
Tem uma evolução do personagem que a cada história vai ficando mais louco e perverso, sob a compleição dos pais que acham que ele só quer chamar a atenção - de fato, mas num nível absurdo.
TOMIE -Em duas edições caprichadas da editora Pipoca & Nanquim, são quase 800 páginas em preto e branco. Ito tem uma forma única de criar e escrever histórias - com seus desenhos detalhistas e diagramação cinemática -, numa combinação descritiva direta e objetiva, porém permeada de riquezas da psique humana que vão além da compreensão.
Lançada originalmente no Japão de 1987 a 2000, este foi o primeiro trabalho de Ito e é possível ver a evolução de seus traços nesse período e como vai depurando o seu texto. Esse mangá de horror foi vencedora do prêmio Kazuo Umezu, em 1989, e tida como uma das mais influentes de seu gênero no Japão.
Essa obra é tão importante que desde o seu lançamento gerou um culto de fervorosos fãs. "Tomie" já foi adaptada para nove animes, com mais um em produção, e até hoje é elogiada por críticos em todos os países onde é republicada.
O enredo é simples, mas muito perturbador e doentio, Tomie Kawakami é uma linda, talvez a mais bela mulher já criada, no entanto ninguém sabe de onde surgiu, e ela tem uma peculiaridade marcante, que faz com que os rapazes enlouqueçam de paixão por ela a ponto de perder a razão.
Uma das características de sua beleza é o rosto angelical e uma pinta debaixo do olho esquerdo, porém a sua personalidade é extremamente controversa, com mania de grandeza e extremamente fútil.
Para tornar tudo mais sombrio todos os homens que se envolvem com ela acabam cometendo atos hediondos e bárbaros, entre eles matar e esquartejar a jovem, sem piedade.
Porém uma maldição transforma tudo, pois a partir de sua morte vão surgindo outras Tomies - isso mesmo -, cópias idênticas da bela mulher e que vão participar de outras situações que beiram a perplexidade do horror da condição humana levada ao extremo limite.
Junji Ito então com essa premissa cria uma série de histórias envolvendo sempre a mesma condição do surgimento da bela Tomie, a sua influência nefasta em algum meio familiar, o seu assassinato, alguns extremamente gráficos e violentos.
O HORROR DE MIMI - Outro mangá incrível do mestre japonês, baseado nos textos da obra "Shin Mimibukuro", de Hirokatsu Kihara e Ichiro Nakayama. Publicação da Darkside Books, encadernamento em capa dura, de luxo. Edição caprichada como merece essa obra.
Junji adaptou os contos para o mangá com algumas alterações narrativas que acrescentam o teor mais sombrio que vive a personagem Mimi. Ela protagoniza quase todas as histórias - com exceção da última da casa assombrada com o boneco debaixo da porta de papel (um dos melhores do mestre).
As histórias, variam de segmento no gênero horror, seja com fantasmas, aparições inexplicáveis, portais ou criaturas improváveis. Em todas as histórias só encontrei um probleminha, por serem contos adaptados o encerramento de cada um deles tem dificuldade em dar um final satisfatório. As vezes se encerram de forma abrupta ou parece que faltam lacunas.
Mas são detalhes diante da arte de Ito. Os traços detalhistas continuam surpreendentes, dosando delicadeza com pigmentação visual no uso extremo de tinta.
Os melhores que eu li foram:
A praia
A sós com ela
O barulho na relva
O círculo carmesin
O boneco de assombração
Tem dois micro contos de duas páginas:
O surreal "A coisa em cima do poste" e o engraçado "A Placa no Campo".
Tem uma passagem curiosa, com Junji Ito explicando como fez a adaptação dos contos em uma autoreferência num mangá curto.
Grande trabalho.