BATEAU MOUCHE: Série documental expõe tragédia com 55 mortos e naufrágio da Justiça brasileira - Por Marcos Souza

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Já está disponível na plataforma de streaming Max a série documental Bateau Mouche: O Naufrágio da Justiça, dividida em três episódios. A produção retrata a tragédia que resultou na morte de 55 pessoas e revela um dos capítulos mais obscuros da Justiça brasileira, marcada pela ineficácia e lentidão.
 
A série é assinada pela dupla Tatiana Issa e Guto Barra, que também dirigiu Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez. Conhecidos por suas pesquisas jornalísticas e jurídicas bem fundamentadas, os dois se destacam principalmente pela forma como humanizam os relatos por meio das entrevistas.
 
Produzida pela HBO, a série foi filmada no Rio de Janeiro e utilizou vasto material de arquivo, com imagens da época do naufrágio da embarcação. Foram realizadas 30 entrevistas exclusivas, dando voz aos sobreviventes – alguns deles, ao reviverem a situação crítica, não conseguiram conter a emoção e choraram diante das câmeras. As entrevistas com os familiares das vítimas também ganham destaque, especialmente com Bernardo, filho da atriz Yara Amaral. Ele tinha 15 anos na época da tragédia e hoje tem 52.
 
Foi Bernardo quem, algum tempo depois, quando a Justiça tentava abafar o caso, articulou a criação de uma comissão formada por familiares e sobreviventes do Bateau Mouche IV. Ele mobilizou a imprensa e a sociedade civil para denunciar a lentidão do processo e exigir punição aos responsáveis, trazendo o tema da impunidade para o centro do debate público.
 
O caso Bateau Mouche ficou conhecido como um dos mais escandalosos exemplos de impunidade da Justiça brasileira. É isso que a série busca revelar em detalhes — inclusive na reprodução do naufrágio — evidenciando que tudo poderia ter sido evitado. A ganância, segundo os relatos, foi o principal motivador para que uma embarcação cheia de irregularidades operasse com lotação muito acima do permitido. O resultado foi a morte de 55 pessoas no mar, na noite de Réveillon, momentos antes da queima de fogos em Copacabana.
 
O primeiro episódio contextualiza toda a tragédia, relembrando a noite de 31 de dezembro de 1988, quando a embarcação Bateau Mouche IV zarpou da praia de Botafogo com 142 passageiros. Eles haviam adquirido um pacote turístico que incluía ceia, música ao vivo e a promessa de assistir à queima de fogos do Ano Novo em alto-mar, nas proximidades da praia de Copacabana.
 
Logo no início, os entrevistados — os sobreviventes — relembram os momentos que antecederam o naufrágio, descrevendo como era a embarcação por dentro e como 143 pessoas estavam comprimidas em um espaço extremamente reduzido. Segundo um dos relatos, não havia espaço sequer para se locomover com facilidade. Inclusive, a ceia servida naquela noite não foi suficiente para atender a todos.
 
Um dos episódios narrados pelos sobreviventes envolve a atuação da Capitania dos Portos, que estranhou o fato de o barco estar com lotação tão acima do permitido e prestes a navegar em alto-mar. A embarcação chegou a ser parada e conduzida ao cais para averiguação. No entanto, segundo pelo menos dois entrevistados, a inspeção durou menos de 10 minutos. Eles afirmam que duas pessoas responsáveis pelo barco subornaram um oficial da Marinha para liberar a embarcação — e conseguiram.
 
O ponto crucial desse primeiro episódio é a reconstrução do naufrágio sob a perspectiva dos sobreviventes, que relatam os momentos de tensão, o início do pânico e a sensação de estarem diante de uma tragédia anunciada. Eles notaram o comportamento instável da embarcação, que balançava demais com as ondas fortes do mar, o que aumentava a apreensão a bordo.
 
A embarcação afundou entre a Ilha de Cotunduba e o Morro da Urca, após fazer uma curva em alto-mar, já de frente para a praia de Copacabana.
Para retratar o barco, o naufrágio e as sequências de pânico, a produção realizou recriações detalhadas, com cenas filmadas tanto no mar quanto em um gigantesco tanque cenográfico — com 40 metros de comprimento, 30 de largura e até 25 de profundidade. O tanque permitia a simulação de ondas artificiais e chuva, tudo sob controle, com o uso de figurantes e extras.
 
A embarcação cinematográfica utilizada era uma réplica em escala reduzida do Bateau Mouche IV, que cumpriu bem o papel de transmitir veracidade às cenas dramáticas da tragédia.
 
O segundo episódio mostra o resgate dos sobreviventes e dos corpos, momentos que ocorreram logo após a tragédia, com destaque para o depoimento do jornalista Renato Machado — que, na ocasião, cobria o Réveillon de Copacabana para a TV Globo, quando foi avisado sobre o naufrágio do Bateau Mouche. Ele conta que seguiu imediatamente para o cais da Marina, onde estavam sendo levados os sobreviventes resgatados por embarcações, além dos corpos. “Era a imagem mais pavorosa que eu já vi. Dezenas de cadáveres sendo colocados no cais, e os familiares chegando desesperados”, relembra.
A jornalista Fátima Bernardes também participa da série e fala sobre o impacto que foi noticiar a tragédia — na época, ela apresentava o Jornal Nacional.
 
Entre os momentos mais emocionantes, a série mostra reencontros de familiares que achavam que seus entes queridos haviam morrido, mas que haviam se separado no momento do naufrágio. Também há cenas com familiares buscando notícias ou descobrindo, ali mesmo, que um parente havia falecido. As imagens recuperadas de reportagens da época retratam com força a violência e o horror daquela noite.
 
Logo em seguida, a série revela o início das investigações sobre o incidente gravíssimo, que envolvia os sócios da empresa Bateau Mouche Rio Turismo: os espanhóis Faustino Puertas Vidal e Avelino Rivera, e o português Álvaro Costa — responsáveis diretos pela embarcação, pela segurança e pela venda dos pacotes turísticos do evento. Sob investigação da polícia e do Ministério Público do Rio de Janeiro, vieram à tona laudos técnicos estarrecedores, que apontaram diversas irregularidades na embarcação: furos no casco, escotilhas abertas e coletes salva-vidas precários, escondidos dentro do barco.
 
Para piorar — e talvez o mais revoltante —, o Bateau Mouche era, na verdade, um “sucatão” reformado por um engenheiro civil, e não naval. As modificações foram feitas às pressas para comportar mais de 100 pessoas, embora o barco tivesse sido projetado para suportar apenas 25.
A impunidade jurídica em torno do caso é muito bem retratada na série. A jornalista Elenice Bottari, do jornal O Globo, que acompanhou todo o processo, relata como a Justiça tratou a tragédia. O juiz Jasmim Simões Costa, da 12ª Vara Criminal, absolveu os 11 acusados — entre eles, Faustino Puertas Vidal, Avelino Rivera e Álvaro Costa. A defesa alegou que “os réus não atuaram dolosa ou culposamente, não previram o naufrágio, nem era ele previsível nas circunstâncias”.
 
Essa sentença gerou comoção nacional diante do sentimento de impunidade vivido por famílias e sobreviventes.
 
Mais tarde, após apelo da promotoria, os três principais sócios tiveram o julgamento revisto e foram condenados. No entanto, fugiram antes de cumprir a pena.
 
A cobertura documental do processo jurídico é muito bem feita, com imagens cedidas por emissoras como Band, Cultura e Globo, além de relatos dos advogados de defesa de alguns acusados, que oferecem um contraponto à narrativa principal — tentando atribuir a culpa ao comandante da embarcação, o que é ainda mais revoltante, já que ele morreu no naufrágio.
 
Com o caso do Bateau Mouche completando 36 anos desde aquela fatídica noite, a série expõe como o espelho da Justiça brasileira se mostrou falho em atender as famílias e sequer garantir as indenizações devidas. Apenas uma das famílias chegou a receber compensação. O processo só não caiu no esquecimento graças à persistência de Bernardo Amaral — filho da atriz Yara Amaral — e à cobertura da imprensa, com reportagens recorrentes da TV Globo ao longo dos anos.
 
Um dos momentos mais emblemáticos foi quando a jornalista Glória Maria descobriu o paradeiro dos sócios espanhóis em uma cidade da Espanha, onde já mantinham um negócio de venda de veículos. Eles eram foragidos da Justiça brasileira. Glória tentou entrevistá-los e exibiu uma reportagem no Fantástico, ainda nos anos 1990.
 
A Justiça brasileira chegou a solicitar ao governo espanhol a prisão e extradição dos condenados, mas o pedido foi recusado. O caso permanece, até hoje, sem justiça efetiva — com os responsáveis foragidos.
 
A série Bateau Mouche: O Naufrágio da Justiça faz jus ao título e mostra, com competência e sensibilidade, como a tragédia se transformou também em um naufrágio moral do sistema jurídico brasileiro.
 
Recomendo muito. Assista.
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